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A diferença que uma palavra faz… imagine-se uma narrativa inteira

Luciano Amaral, no atento e recomendável Crise Crónica, aponta, e bem, um erro no meu penúltimo artigo de opinião publicado no Negócios sobre a importância das narrativas, o qual se partia de dois artigos académicos publicados no FMI e no BIS.

Hoje é apresentado neste artigo de Rui Peres Jorge, de resto bem intencionado, no Jornal de Negócios: “Joong Kang e Jay Shambaugh, defendem que o défice externo português após a adesão ao euro não resulta da falta de competitividade das exportações. Os economistas sublinham que o saldo da balança comercial portuguesa esteve relativamente equilibrado desde 2000, e que o traço distintivo do desequilíbrio português foi uma queda acentuada do saldo das transferências com o exterior e um aumento dos rendimentos pagos ao exterior”. Não é isso que Kang e Shambaugh dizem, embora o apresentem de maneira suficientemente ambígua para enganar incautos. Eles não dizem que “o saldo da balança comercial esteve relativamente equilibrado”. O que dizem é que melhorou. Isto é, em vez de ser de 12% do PIB ao ano passou para 10%. Melhorou, mas continua profundamente desequilibrado (10% em cada ano…)

Embora exagere nos valores (o saldo comercial, que inclui bens e serviços, foi de -7,2% do PIB em 2010 e entrou em terreno positivo em 2012), Luciano tem toda a razão. De facto, onde se lê “relativamente equilibrado”, dever-se-ia ler “relativamente estável”.

Há um erro terminológico e a diferença é naturalmente relevante – até porque poucos serão os que recordam um saldo da balança comercial equilibrado ou excedentário em décadas passadas, já que tal coisa não se via em Portugal desde a segunda guerra mundial.

O reparo, escreve Luciano, pretende evitar que “pegue o erro” através do qual se escamoteia que “o problema da economia portuguesa é um problema de desequilíbrio externo” e que se iluda uma inevitabilidade: “Ou esse desequilíbrio é pago com exportações, ou então é pago de outra forma (transferências unilaterais, como as remessas, ou investimento)”.

Na verdade, o problema no curto prazo pode ‘resolver-se’ de outra forma, como bem perceberam os arquitectos do programa de ajustamento: através de uma redução drástica dos rendimentos, do consumo e das importações que eliminem a procura e o défice.

Mas para este debate este é um aspecto lateral. Mais importante é o facto de a nota de Luciano Amaral, de resto também ela bem intencionada, desvalorizar o ponto central do contributo de Joong Kang e Jay Shambaugh, o que me dá a oportunidade de regressar a ele.

Segundo a análise, a persistência do défice comercial nacional não só antecede o euro, como não se agravou com a participação na moeda única – permanecendo relativamente estável e em linha com o passado. O degradação do défice externo resultou antes de uma redução abrupta das remessas de emigrantes e de um progressivo aumento do rendimentos pagos ao exterior em troca de endividamento.

Daqui decorre, sustentam os autores, que o agravamento do défice externo não traduz uma perda de competitividade das exportações, ou mais correctamente do sector exportador, ou como prefere Luciano, da economia como um todo. É antes o resultado de uma alteração estrutural nas relações financeiras com o exterior, em parte alimentada e permitida pelo novo mundo de dívida fácil que se abriu com a moeda única.

Não está em causa a necessidade de ganhar competitividade, nem as virtudes de reequilibrar a balança externa pelo crescimento das exportações que com certeza todos desejamos. Mas quando economistas como Kang e Shambaugh sublinham que não há evidência de que o factor preço/salário penalizou o desempenho comercial, isso merece ser notado. O défice comercial existia e existiu, com euro e sem euro. O que mudou foi o comportamento da balança de rendimentos e transferências correntes (e defendem alguns, em parte pela própria participação na moeda única)

Este ponto é fundamental. É que a narrativa dominante, no Governo e na troika, é a de que a compressão salarial permitirá recuperar a competitividade perdida  com a moeda única (que na verdade não se perdeu por esta via), como se pudéssemos pagar em cortes salariais todas as ineficiências e atrasos desta nossa economia. Essa narrativa, como é cada vez mais evidente, carece de melhor fundamentação.

Se uma palavra errada fez tanta diferença, imagine-se agora uma narrativa inteira. E essa sim já pegou.

(Sobre outras narrativas sobre défice externo, fica o convite para um contributo recente no Massa Monetária)